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[1]O Novo CPC, com relação especificamente à arbitragem, representou uma grande perda de oportunidade de uma melhor disciplina da alegação de convenção de arbitragem. Como já tivemos oportunidade de pontuar, o Projeto do NCPC, na versão aprovada na Câmara dos Deputados, continha sensíveis avanços na disciplina da matéria,[2] avanços esses que se perderam na versão final aprovada no Senado Federal e sancionada pela Presidência da República.
Tratava-se da moderna criação de um procedimento específico para alegação de existência de convenção de arbitragem, que colocava o Brasil na vanguarda na matéria, prestigiando a arbitragem
Nesse sentido, em vez de alegar-se a existência de convenção de arbitragem em matéria preliminar de contestação, vendo-se a parte obrigada a adiantar, com isso, o próprio mérito de sua defesa (em atenção ao princípio da eventualidade), a versão aprovada na Câmara criava, como dito, momento procedimental específico para a apreciação de existência de convenção de arbitragem. A existência de convenção de arbitragem deveria ser deduzida em petição autônoma, na audiência de conciliação ou mediação, ou, caso essa não viesse a ocorrer, no momento em que o réu manifestasse desinteresse em sua realização, ou, ainda, no prazo da contestação, caso a audiência não tenha sido designada por outra razão.
Em todas essas hipóteses, essa petição teria o efeito de interromper o prazo para contestar (desde que instruída com a convenção de arbitragem), que voltaria a correr, por inteiro, somente após a intimação da decisão rejeitasse a alegação de convenção de arbitragem (evidentemente, pois, em caso de acolhimento, não haveria que se falar sequer em momento para contestar, com a extinção do processo sem resolução de mérito).
Deste modo, evitar-se-ia que o réu fosse forçado a adiantar o mérito da matéria que pretendesse ver deduzida no juízo arbitral (meritum causae). Deveria ele apenas formular a petição autônoma, instruindo-a obrigatoriamente com o instrumento da convenção de arbitragem (sob pena de rejeição liminar, podendo, inclusive, vir a ser considerado revel, em caso de descumprimento dessa exigência), tecendo as razões que entendesse pertinentes, repita-se, apenas e tão somente com relação à competência do juízo arbitral, sem a necessidade de adentrar o mérito. O juiz, então, ouviria a parte contrária apenas quanto à alegação de convenção de arbitragem, decidindo a questão.
Com isso, preservar-se-ia o mérito para o momento oportuno e para o foro competente.
Contudo, na versão final e aprovada do NCPC, suprimiu-se esse procedimento específico para alegação de convenção de arbitragem, com o retorno de sua alegação como uma simples preliminar de contestação, tal como já ocorre atualmente no CPC/1973, ao argumento de assegurar, com isso, a celeridade processual, entendimento esse que nos parece equivocado.
Essa supressão tem preocupado a comunidade arbitral brasileira, tanto que, em artigo publicado no final do ano passado, José Antonio Fichtner propõe uma interessante solução, qual seja, a de que a alegação de convenção de arbitragem possa ser feita por meio de uma exceção de pré-conhecimento.[3] Embora concordemos com a proposta do autor, temos de considerar que ela traz um risco à parte, ao menos até que essa possibilidade se consolide no entendimento jurisprudencial, especialmente com o modelo de respeito aos precedentes adotado pelo NCPC. Até lá, corre-se o risco de, rejeitando a alegação de convenção de arbitragem, o juiz entender que houve revelia, por não ter sido contestado o mérito da ação.
Assim, propomos uma nova alternativa, a possibilidade de que as partes disciplinem esse procedimento específico para alegação de existência de convenção de arbitragem através de negócio jurídico processual.[4]
A maior e melhor disciplina da possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais é, indubitavelmente, um dos grandes avanços do NCPC, mesmo que, no estágio atual, ainda esteja cercado de dúvidas a respeito de sua eficácia e de seus limites.
Os negócios jurídicos processuais, conquanto estudados no direito estrangeiro (Alemanha e Itália, v.g.) há cerca de quase cem anos,[5] demoraram, e muito, para chamar dos processualistas brasileiros, ficando, durante muito tempo, relegada a um segundo plano doutrinário, tratada lateralmente, fruto de uma visão (excessivamente) publicista do processo,[6] à exceção de primoroso e visionário estudo de José Carlos Barbosa Moreira, escrito em 1982, e publicado e republicado nos anos de 1983 e 1984.[7] Esse desinteresse da doutrina, contudo, desapareceu com o advento do NCPC, bastando ver os trabalhos específicos sobre o tema publicados nos últimos tempos.[8]
Os negócios jurídicos processuais representam um interessante diálogo entre o direito privado e o direito processual, razão pela qual Emilio Betti, com propriedade, afirma que a noção de negócio jurídico é aplicável ao campo do direito processual.[9]
Grosso modo, podemos conceituar negócio jurídico processual como sendo a possibilidade de as partes criarem certos regramentos processuais para si, sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo, dentro dos limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico (NCPC art. 190).[10] São, em suma, convenções celebradas entre as partes para constituir, modificar ou extinguir uma situação jurídica processual, sempre dentro dos limites admitidos pela lei.[11] Trata-se de conceito consentâneo com a ideia de autonomia privada, princípio esse que fundamenta o negócio jurídico processual, sem perder o processo o seu caráter público. Assim, a autonomia privada quer justamente significar o poder de criar normas jurídicas dentro dos limites impostos pelo ordenamento jurídico.[12] Esse poder, no âmbito processual, encontra-se agora disciplinado nos arts. 190 e 191 do NCPC. Por evidente, no campo do direito processual, esse poder tem uma amplitude menor do que no direito privado, enfrentando limites maiores,[13] tendo-se o processo como um instrumento do Estado Democrático de Direito.[14]
Entretanto, em havendo paridade entre as partes (NCPC artigo 190 parágrafo único) e tendo o negócio jurídico processual por objeto ônus, poderes, faculdades e deveres processuais disponíveis das partes, sem o malferimento de princípios e garantias fundamentais do processo num Estado Constitucional, sua aplicação não deve ser apequenada.
O objetivo nesse estudo não é o de uma análise mais profunda do instituto jurídico dos negócios processuais, ainda que algumas linhas a seu respeito se façam necessárias, mas, sim, a de tê-lo como um instrumento adequado para que as partes interessadas possam previamente disciplinar o procedimento para alegação de convenção de convenção de arbitragem (negócio jurídico processual celebrado antes do processo).
Em verdade, a própria ideia de negócio jurídico processual não é estranha à arbitragem;[15] ao revés, lhe é muito íntima. A arbitragem nasce de um negócio jurídico processual (a convenção de arbitragem, cláusula ou compromisso) e, como regra, desenvolve-se a partir da celebração de um outro negócio jurídico processual (a assinatura do Termo de Arbitragem, que moldará o procedimento arbitral). Por evidente, na arbitragem, por se tratar de jurisdição privada, o âmbito dos poderes são maiores do que os observados no processo civil, como a possibilidade de criação de deveres inclusive para os árbitros, como a fixação de prazo para prolação da sentença arbitral.
Pois bem, dito tudo isso, temos que os negócios jurídicos processuais traduzem-se num interessante instrumento posto à disposição das partes apto a resolver o problema da alegação de convenção de arbitragem.
Assim, em nosso sentir, podem as partes, quando da elaboração da cláusula arbitral, convencionar, também, como se dará o começo do processo judicial, caso porventura haja a propositura de ação perante o Poder Judiciário, em vez de dar-se início à arbitragem, ou caso venham a ser judicializadas a existência, a validade e a eficácia da aludida cláusula arbitral, prevendo que, nessas hipóteses, incumbirá à parte-ré, ab initio, apenas deduzir, em petição autônoma, a existência de convenção de arbitragem, instruindo-a obrigatoriamente com o instrumento da convenção de arbitragem (sob pena de rejeição liminar, podendo, inclusive, vir a ser considerado revel, em caso de descumprimento dessa exigência), tecendo as razões que entendesse pertinentes, repita-se, apenas e tão somente com relação à competência do juízo arbitral, sem a necessidade de adentrar o mérito, abrindo-se, então, prazo para o juiz ouvir a parte contrária apenas quanto a essa alegação de convenção de arbitragem, decidindo a questão na sequência. Prevendo, por fim, que o prazo para contestar a ação propriamente dita (= mérito) somente teria início após a intimação da decisão rejeitasse a alegação de convenção de arbitragem, pois, em caso de acolhimento, não haveria que se falar sequer em momento para contestar, com a extinção do processo sem resolução de mérito.
Trata-se, portanto, da possibilidade de resgatar o momento procedimental específico para a apreciação de existência de convenção de arbitragem, tal como inicialmente projetado na versão do NCPC aprovada na Câmara dos Deputados, pela via negocial (= negócio jurídico processual).
Deste modo, sem prejuízo da tese por José Antonio Fichtner, com a qual concordamos, evitar-se-ia, com a celebração do negócio jurídico processual, o risco que ela traz à parte de sofrer os efeitos da revelia por não ter sido contestado o mérito da ação, na hipótese de rejeição da alegação de convenção de arbitragem, ao menos até que essa possibilidade (exceção de pré-conhecimento) se consolide no entendimento jurisprudencial, especialmente com o modelo de respeito aos precedentes adotado pelo NCPC.
[1] Este texto foi escrito no final do ano passado, originalmente como um diálogo como o artigo de José Antonio Fichtner, para compor obra ainda no prelo organizada por Ronaldo Cramer e Paulo Nasser. Contudo, diante do crescente interesse sobre o tema, e com a autorização dos organizadores, publica-se essa versão.
[2] Sobre o tema, cfr. André Vasconcelos Roque e Thiago Rodovalho. A convenção de arbitragem e o novo CPC no Senado Federal: a exceção que foge à regra, in Migalhas, n. 3.509, 3.12.2014, disponível em aqui, e Francisco José Cahali e Thiago Rodovalho. A arbitragem no novo CPC – primeiras impressões, in Alexandre Freire et allii (orgs.). Novas tendências do processo civil, v. 2, Salvador: JusPodivm, 2014, pp. 583/604.
[3] José Antonio Fichtner. Alegação de convenção de arbitragem no novo CPC, in Migalhas, 17.9.2015, disponível aqui.
[4] No mesmo sentido, o entendimento de Marcela Kohlbach. Clique aqui.
[5] V., por todos, José Carlos Barbosa Moreira. Convenções das partes sobre matéria processual, in Temas de direito processual (terceira série), São Paulo: Saraiva, 1984, p. 87; e Antonio do Passo Cabral. Convenções processuais, Salvador: JusPodivm, 2016, pp. 99 et seq.
[6] Ainda que um certo temperamento se faça necessário, cfr. as críticas de José Carlos Barbosa Moreira. Privatização do processo?, in Temas de direito processual (sétima série), São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 7/18; e José Carlos Barbosa Moreira. O neoprivatismo no processo civil, in Temas de direito processual (nona série), São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 87/101. Ainda a esse respeito, v. também a Tese de Livre-Docência de Antonio do Passo Cabral. Convenções processuais, Salvador: JusPodivm, 2016, pp. 31/37 e 104/114.
[7] José Carlos Barbosa Moreira. Convenções das partes sobre matéria processual, in Temas de direito processual (terceira série), São Paulo: Saraiva, 1984, pp. 87/98.
[8] A título de ilustração, cfr., entre outros, Antonio do Passo Cabral. Convenções processuais, Salvador: JusPodivm, 2016; Robson Godinho. Negócios jurídicos processuais sobre o ônus da prova no Novo Código de Processo Civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015; Pedro Henrique Nogueira. Negócios jurídicos processuais, Salvador: JusPodivm, 2016; e Antonio do Passo Cabral e Pedro Henrique Pedrosa Nogueira (coords.). Negócios processuais, Salvador: Juspodivm, 2015. V., ainda, ainda que não abordando o tema especificamente, Fernando da Fonseca Gajardoni. Flexibilização procedimental, São Paulo: Atlas, 2008; e Claudia Elisabete Schwerz Cahali. O Gerenciamento de Processos Judiciais em busca da efetividade da prestação jurisdicional, Brasília: Gazeta Jurídica, 2013.
[9] Emilio Betti. Negozio giuridico, in Antonio Azara e Ernesto Eula (dirs.). Novissimo Digesto Italiano, vol. XI, Torino: Unione Tipografico Editrice Torinese, 1965, p. 220: “La nozione di negozio giuridico qui disegnata si può applicare anche nel campo del diritto processuale a taluni atti processuali di parte”.
[10] Para uma ampla discussão sobre o conceito de negócio jurídico processual, v. Pedro Henrique Nogueira. Negócios jurídicos processuais, Salvador: JusPodivm, 2016, pp. 144/159. Cfr., ainda, Antonio do Passo Cabral. Convenções processuais, Salvador: JusPodivm, 2016, p. 68.
[11] Robson Godinho. Negócios jurídicos processuais sobre o ônus da prova no Novo Código de Processo Civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 130.
[12] Luigi Ferri. L’autonomia privata, Milano: Giuffrè, 1959, p. 5. Em sentido próximo, Ana Prata. A tutela constitucional da autonomia privada, Coimbra: Almedina, 1982, p. 11. Cfr., ainda, Thiago Rodovalho. Cláusula arbitral nos contratos de adesão, São Paulo: Almedina, 2016, p. 42.
[13] José Carlos Barbosa Moreira. Convenções das partes sobre matéria processual, in Temas de direito processual (terceira série), São Paulo: Saraiva, 1984, p. 91. Alguns ordenamentos, inclusive, optam por tratar desses limites através de conceitos jurídicos indeterminados, como lembra De Stefano a respeito do direito alemão, limitando os negócios jurídicos processuais aos «bons costumes»: Giuseppe de Stefano. Studi sugli accordi processuali, Milano: Giuffrè, 1959, p. 123.
[14] Marcos Destefenni. Manual de processo civil individual e coletivo, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 41.
[15] Pode ser visto, inclusive, como uma influência da arbitragem no processo civil: Thiago Rodovalho. Os impactos do NCPC na arbitragem em consonância com a Lei n. 13.129 de 2015, in Lucas Buril de Macêdo, Ravi Peixoto e Alexandre Freire. Coleção Novo CPC – Doutrina Selecionada, vol. 2, Salvador: JusPodivm, 2015, pp. 919/922.
Por Thiago Rodovalho, doutorando e mestre em Direito Civil pela PUC-SP, com Pós-Doutorado no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht em Hamburgo, Alemanha. Membro da Lista de Árbitros da CAM-FIEP, do CAESP, da CARB, da CAE, CBMAE, do CEBRAMAR, e da ARBITRANET.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 15 de maio de 2016, 8h30

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